Artigos literários

DA CARPINTARIA DAS PALAVRAS A OSSOS DE BORBOLETA

Solange Sólon Borges, editora e escritora

Quais conselhos eu daria para quem quer enveredar pelos caminhos da escrita? Ler bons autores dos mais diversos gêneros, o que for do seu universo de interesse. Dessa forma, cria-se repertório, amplia-se a imaginação e se adquire intimidade com a estrutura literária.

O repertório é parte do processo: escolhe-se uma palavra, mas não é bem aquela que expressa o sentimento e há outra melhor para encaixar no texto: É ira? Fúria? Cólera? Braveza? Mágoa? Ferocidade? Irritação? Rancor? Repulsa? Olha a riqueza de vocábulos! Por isso, repertório! Evita-se a repetição de termos, o que denota pobreza de linguagem, com exceção de ênfases necessárias à construção.

Escrever envolve dois degraus: escrever a quente é deixar fluir o texto sem preocupação com concordância e outras querelas gramaticais. Divirtir-se, cuidar da inspiração. A fria requer transpiração mesmo, suar a camisa. É quando se ‘penteia’ o texto, as palavras são ‘escovadas’, avalia-se forma e conteúdo do móvel literário.

Com a prática constante, esses mecanismos tornam-se naturais até até ser possível subverter estruturas e sentidos, dar outro propósito às palavras, como faz o sensível Manoel de Barros: “Sabiá de setembro tem orvalho na voz. De manhã ele recita o sol” ou “As coisas que não existem são as mais bonitas”. Metafísico, não?

Ou o genial João Guimarães Rosa, em seu trabalho Tutaméia ou Terceiras Histórias: “Agora, ao pôr do sol, desciam as canoas – de enfia-a-fino, serenas, horizonteantes, cheias de rude gente à grita, impelidas no reluzente – de longe, soslonge”. Lições do inventor de palavras Rosa que apostava em sonhizidão (um sujeito fadado à solidão?), outro classificado como ‘proparoxítono’, além dos copanheiros (companheiros de copo).

Escrever é trabalho de carpintaria a limar, nivelar e ritmar palavras e frases, com as melhorias necessárias a favor da coerência, elegância, clareza. E também encontrar seu próprio método de trabalho e voz literária.

Ao final do dia de um árduo labor literário, se descontente [desafeiçoado, dissaboroso, desgostoso, enfadado], pode-se deletar o que se escreveu. Não devemos nos levar tão a sério!

No dia seguinte, é pegar de novo formão, serrote, prumo, régua e esquadro, arquitetar outro texto alicerçado em emoções renovadas e palavras esculpidas. Mãos à obra. E assim vou epilogando à la Rosa que, aliás, está lá no meu canal do YouTube, em um episódio no qual leio Os temulentos, texto sobre bêbados e delírios para curar nossa ressaca literária.