A leitura e a escritura, atos essencialmente solitários, integram o imaginário. Apesar da ideia de se integrar uma comunidade nas redes sociais, de participar em uma ‘bolha’ na qual há borbulhas similares, de fato se é um ser único a mexer em um dispositivo e executar tarefa solo tanto quanto a leitura e a escritura o são.
O que me faz lembrar o escritor argentino Alberto Manguel: “A leitura é uma tarefa confortável, solitária, vagarosa e sensual. A escrita costumava compartilhar algumas dessas qualidades” (Os livros e os dias: um ano de leituras prazerosas, Companhia das Letras), diz o escritor ao olhar para ambos os lados da página, o verso e reverso das sílabas.
A frase dele vem acompanhada da crítica de que o escritor hoje tem certas características de caixeiro viajante e ator de repertório ao ser convocado para fazer apresentações em lugares distantes e exaltar os próprios livros como se fossem vassouras ou enciclopédias.
Essa metáfora exótica demonstra a inquietação de Manguel com sua agenda de compromissos, quando a única coisa que queria fazer era estar em casa lendo, escrevendo, viajando entre seus livros na estante.
Ao comparar a pré-existência do universo a um estado de potencialidade com o tempo e o espaço ainda em suspensão com a oferta de várias possibilidades, ele espraia ideia análoga à existência do próprio livro… quando ele ainda gravita no plano do sonho, “até que as mãos que o abrem e os olhos que o percorrem agitam as palavras e as despertam”. A necessidade de polimento tanto na vida como nas palavras dormentes em nós e em páginas recolhidas.
Óbvio que Manguel, em seu livro, compartilha leituras de títulos diversos e impressões preciosas, como, por exemplo, sobre A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, e a frase de impacto que o abre: “Hoje, nesta ilha, aconteceu um milagre”. Abertura perfeita para a pergunta que o leitor fará na sequência, ao aceitar o jogo e mergulhar na leitura: “mas qual milagre?” e virar a página em uma busca alucinada de continuação.
Um livro se ergue entre pilares que unem a experiência do escrever e a imaginação do leitor com o lastro de identificação entre ambos.
Nessa viagem percorrida, Manguel diz que olha para os livros em sua estante e pensa que eles não têm conhecimento da sua existência; só ganham vida quando ele, leitor, os abre e vira as suas páginas, e mesmo assim eles, os livros, não sabem que ele é o seu leitor.
Insciência perfeita, mistérios literários! O livro como palimpsesto, um manuscrito a ganhar novos caracteres e significados a cada vez que se reabre um volume ou um e-book e aparenta ser uma história repaginada.
Fundamental é a visão de Manguel da leitura, quando participou de Fronteiras do Pensamento… a leitura como um ato de poder, porque o leitor é temido em todas as sociedades, bem como o escritor – ambos ultrapassam a normalidade das fronteiras, estabelecem identidades, questionam, refletem, enxergam além. Pelos mesmos motivos bibliotecas alimentaram fogueiras, mas o livro subsiste à crueldade daqueles que temem o conhecimento.
E assim o leitor vai mantendo a possibilidade de singrar por histórias inumeráveis, seja qual for o dispositivo, físico ou digital, ávido por cultura e educação.
Que se abandone o caixeiro viajante da clássica frase dos romanos, “navegar é preciso, viver não é preciso”, indo pra lá e pra cá, e adote-se o contraponto que o poeta português Fernando Pessoa avidamente faz: “viver não é necessário; o que é necessário é criar!”.
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