Da carpintaria das palavras a ossos de borboleta

“Sabiá de setembro tem orvalho na voz. De manhã ele recita o sol.” Ou “As coisas que não existem são as mais bonitas”.

Manoel de Barros

Por Solange Sólon Borges

Muitos me perguntam que conselhos eu daria para quem quer enveredar pelos caminhos da escrita. Não há mistério nem mágica: o conselho segue o mesmo ao longo do tempo. Ter o hábito de ler bons autores dos mais diversos gêneros: poesia, crônica, conto, romance, aventura, ficção científica, policial, terror, títulos infantojuvenis, além dos clássicos consagrados e não-ficção, autores nacionais e estrangeiros, livros de história, o que for do seu universo de interesse. Leia títulos bons e ruins, pois se aprende com ambos.

Repertório se cria assim, amplia-se a imaginação para novos horizontes e se adquire intimidade com a estrutura literária, encontra-se a própria voz, o estilo particular de escrita, saber trabalhar tempo e localidade.

O repertório é parte importante do processo: você escolhe uma palavra, mas não é bem… aquela que expressa um determinado sentimento e busca outra que melhor se encaixe no texto: é ódio? Ira? Fúria? Cólera? Angústia? Braveza? Mágoa? Ferocidade? Irritação? Rancor? Repulsa? Braveza? Olha só a riqueza de vocábulos nossa língua oferece! Qual delas se encaixa melhor em seu texto? Por isso, repertório! Para ter jogo de cintura e saber escolher a palavra mais adequada.

Desse jeito se evita a repetição de termos, que sempre significa pobreza de linguagem. Até a escolha de um sinônimo deve ser avaliada para se encaixar na sua ideia. Tendo-se repertório, a substituição de uma palavra por outra se torna algo natural. Lembre-se: repetição pode gerar monotonia no andamento da leitura. Uma coisa lenta, chata… 

No parágrafo anterior, substituí ‘palavra’ por ‘termo’ e ‘vocábulo’ a fim de evitar o redito, repisar mais do mesmo. A sensibilidade também é essencial para eleger a expressão que valorizará a frase, dando ritmo e sentido a ela. 

Escrever envolve dois degraus: a fase quente e a fase fria, o que significa que escrever a quente é deixar fluir livremente o texto sem preocupação com concordância, colocação de vírgulas, acento e outras querelas gramaticais. Divirta-se nessa fase, cuide da inspiração.

A etapa fria’ requer transpiração mesmo, suar a camisa, trabalhar mais com a lógica. É quando você considera o texto relativamente pronto e vai dar aquela revisada para ele ficar melhor ainda. ‘Penteie’ o texto, escove as palavras com carinho, ofereça o brilho necessário a uma construção bem-feita, avalie forma e conteúdo.

Mas, lembre-se, separe os processos. Com a prática constante, esses mecanismos são incorporados ao labor textual, tornam-se naturais. E aí é possível até subverter estruturas e sentidos, libertar-se da escravidão gramatical, dar outro propósito às palavras, como faz o sensível Manoel de Barros: “Sabiá de setembro tem orvalho na voz. De manhã ele recita o sol”. Ou “As coisas que não existem são s mais bonitas”. Metafísico, não?

Ou como o genial João Guimarães Rosa, em seu trabalho Tutaméia ou Terceiras Histórias, por exemplo: “Agora, ao pôr do sol, desciam as canoas – de enfia-a-fino, serenas, horizonteantes, cheias de rude gente à grita, impelidas no reluzente – de longe, soslonge” e “Os olhos põem as coisas no cabimento”. Ou, ainda, “enxadachin”, mescla de enxada com espadachim. Lições do inventor de palavras Rosa que apostava em sonhizidão (um sujeito fadado à solidão?), outro classificado como ‘proparoxítono’, além dos copanheiros (companheiros de copo).

Assim, epiloguei, parafraseando Rosa.

Portanto, escrever é puro trabalho de carpintaria a limar e nivelar palavras e frases. E isso demanda exercício constante e disposição. E não há texto que nasça redondamente pronto e não mereça certas melhorias para ter coerência, elegância, ser inteligível. Cada um tem o seu próprio processo de escrita. Encontre o seu.

Diversos escritores apontam para a disciplina relacionada ao ato de escrever e, inclusive, o desapego, sinal de maturidade. Às vezes eles chegam ao fim de um dia de forte labor literário e jogam fora tudo o que foi escrito para, no dia seguinte, retornar ao ponto inicial. Ou ‘esquecem’ o texto na gaveta para resgatá-lo no momento certo. Texto e personagens parecem ter vida própria. Eles reaparecem quando querem.

Se você chegar ao final do dia e, descontente [desafeiçoado, dissaboroso, desgostoso, enfadado, etc.], deletar o que escreveu, não faz mal, não se leve tão a sério. No dia seguinte, pegue de novo a lima, o formão, o serrote, o prumo, régua e esquadro, arquitete outro texto alicerçado em emoções renovadas e palavras esculpidas. Mãos à obra.


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